Como conciliar os temas urgentes da habitação social e da preservação do patrimônio das cidades num país com um déficit habitacional de 6 milhões de domicílios?
O desafio de responder essa e outras questões prementes foi proposto em seminário organizado pela Comissão Especial de Patrimônio Cultural (CPC) do CAU/SP nesta quinta-feira, 09/08, e realizado nas dependências do Centro Cultural Banco do Brasil na capital paulista.
Reunindo conselheiros e especialistas convidados, os temas debatidos neste seminário vão servir de subsídio para a Carta Aberta que o Conselho prepara, e que vai oferecer como uma agenda propositiva aos candidatos ao Governo de São Paulo nestas eleições.
“A ideia é trabalhar com a discussão do patrimônio integrado às ações ligadas à habitação, ao planejamento e a sustentabilidade das cidades”, sintetizou a coordenadora da CPC, Maria Rita Amoroso, na abertura do evento.
Unir política urbana com preservação
“Eu entendo que a questão do patrimônio é uma questão urbana”, afirmou a conselheira federal do CAU/BR por São Paulo, Nadia Somekh. Segundo ela, a política de preservação não pode ficar desconectada de uma política pública mais ampla para as cidades.
Nesse aspecto, é necessário que a sociedade se envolva mais na questão da preservação de seus edifícios de interesse cultural. “A sociedade tem que decidir o que quer deixar como sua ‘marca’. O problema é que essa sociedade somente quer construir edifício”, diz.
Ela reconhece que começa a surgir um interesse maior da sociedade pelo tema, como demonstra o sucesso das “Jornadas do Patrimônio”, promovidas pela Prefeitura de São Paulo, e que estimulam a visitação de prédios históricos da capital.
“O que temos de bacana aqui em São Paulo é que nós temos vários bairros inteiros tombados por uma mobilização da sua população local”, lembrou ainda a conselheira do CAU/SP, Cassia Regina de Magaldi, integrante da Comissão de Patrimônio.
Fora da redoma, dentro da vida
Em Belo Horizonte, a Praça da Liberdade (1903), é um palco tradicional de manifestações da capital mineira. Mas recentemente, o poder público tentou impedir o seu uso enquanto local de protestos com a justificativa de que poderia afetar o patrimônio preservado.
Flávio de Lemos Carsalade, professor da Escola de Arquitetura da UFMG, lembrou deste caso para reforçar a importância de se considerar a preservação do patrimônio enquanto um direito dos cidadãos e um meio de inclusão.
“Nós entendemos que o patrimônio tem que ter uma função social”, pontuou. “O que a gente tem lutado é para que patrimônio fique dentro da vida e não dentro de uma redoma”.
Sem arquiteto e sem condições
Políticas de preservação do patrimônio, tradicionalmente, esbarram em dois grandes problemas no Brasil: falta de financiamento específico, e lacunas na capacidade do poder público para atuar nesta área, principalmente nas regiões mais carentes.
Vários municípios não têm porte nem recursos. “A nossa rede urbana é absolutamente desigual”, afirmou Nabil Bonduki, coordenador da Comissão de Política Urbana, Ambiental e Territorial do CAU/SP, lembrando que somente 15 dos mais de 600 municípios de São Paulo têm mais de 400 mil habitantes.
“Se a gente pensar que esses municípios vão ter condições institucionais para lidar com a questão do patrimônio, isso não vai acontecer”, ressaltou José Antonio Zagato, arquiteto da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico).
Uma saída discutida pelos especialistas é a regionalização das políticas de preservação, fortalecendo os órgãos já existentes. Trata-se de estabelecer um planejamento urbano regional, auxiliando a população dos municípios a definirem o que desejam conservar, e exigindo alguns compromissos das gestões locais.
“Nós temos que fazer essa interação entre imóveis de interesse cultural com a vida cotidiana das cidades”, reforçou o conselheiro Nabil Bonduki.
Quanto às questões do financiamento, os participantes concordaram na importância de integrar as várias fontes de recursos, constituindo um sistema estadual.
Em Minas Gerais, relatou Carsalade, da UFMG, foi destinado um percentual do ICMS para as políticas de preservação cultural. As cidades com áreas cultural ou ambientalmente protegidas receberam compensações, e se estimulou as atividades econômicas desenvolvidas a partir da conservação das estruturas pré-existentes.
Habitação de Interesse Social
Durante o seminário, foi reiterada a ideia de que as políticas de habitação social precisam aproveitar melhor o patrimônio construído em vez de se concentrarem na produção de prédios novos.
Essa mudança de pensamento já está acontecendo nos órgãos públicos, relataram os participantes.
“Há um interesse mútuo dos técnicos dos campos da Habitação Social e da preservação do Patrimônio”, avalia Rossella Rossetto, conselheira do CAU/SP e assessora da Coordenadoria de Produção e Análise de Informação da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo. “Essas duas áreas precisam se aproximar. Mas ainda não há um trabalho extremamente integrado”, reconhece.
“Em relação ao reúso, existe uma mística de que o Patrimônio não permite, atrapalha”, diz Walter Pires, arquiteto do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, “mas já está absolutamente incorporada na política dessas instituições a readaptação. Aliás, isso é considerado necessário para a preservação”.
O reúso, embora de viabilização complexa, será “uma resposta à lógica predatória” que ainda predomina nas cidades, considera Juliana Prata, arquiteta que representou a Superintendência do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em São Paulo.
Durante os debates, também se ressaltou a importância de criar caminhos efetivos para que se executem as políticas definidas.
“Os conselhos [do poder público] não são deliberativos e quando não são deliberativos, a discussão daquele grupo não avança”, alerta Tony Matos, conselheiro do Conselho Estadual de Habitação, da Secretaria estadual de habitação de São Paulo.
Por uma política de reabilitação urbana
“Nossa cultura urbanística ainda está totalmente referenciada na demolição e na reconstrução”, ponderou Sara Feldman, conselheira suplente do CAU/SP e professora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-São Carlos.
Em contraste a essa cultura, a professora Feldman debateu o conceito de “reabilitação urbana”: uma política de intervenção que vai se voltar tanto para os valores econômicos, funcionais e também das potencialidades econômicas das áreas a preservar, recorrendo a vários tipos de atuação, tais como restauro e atualização dos edifícios. “O princípio é preservar a população nessas áreas”, afirmou.
Convidado a encerrar os debates, Luiz Fernando de Almeida, diretor do Instituto Pedra, avaliou que a produção da Arquitetura no Brasil teve repercussão e foi qualificada quando houve uma reflexão sobre o patrimônio, “principalmente porque a ideia de patrimônio está ligada menos ao monumento, e mais a uma ideia de qualidade de vida, de cidadania, de lugares e territórios justos”.
Publicado em 10/08/2018
Da Redação