“O objetivo da campanha do CAU contra a Reserva Técnica é (…) conscientizar arquitetos e estudantes de arquitetura quanto ao prejuízo que essa prática traz para todos que queiram receber e responder por seu trabalho”. Essa é a definição apresentada pelo Arquiteto e Urbanista, Renato Luiz Martins Nunes, Conselheiro Federal do CAU/BR, eleito pelo Estado de São Paulo.
Nesta entrevista exclusiva ao site do CAU/SP, ele comenta sobre a questão do recebimento de comissões ou vantagens pela especificação de produtos ou indicação de fornecedores – a chamada “Reserva Técnica”. O assunto é abordado, entre outros temas, na campanha Arquitetos pela Ética – O trabalho do Arquiteto não tem preço. Tem valor – lançada em setembro de 2015 pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (saiba mais).
Graduado pela FAU-USP, Renato Nunes foi professor na Faculdade de Santos, na Universidade de Mogi das Cruzes e no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Atuou como presidente do IAB-SP, diretor administrativo e vice-presidente do IAB Nacional e fundador e conselheiro da Fundação Vilanova Artigas. Coordenou a Câmara de Arquitetura do CREA/SP e foi conselheiro estadual da gestão fundadora do CAU/SP.
Quais as expectativas para a campanha do CAU/BR a respeito da prática da “Reserva Técnica”? O CAU espera fomentar uma nova consciência entre os profissionais a esse respeito?
RN – É importante situar a ação do CAU no contexto histórico da busca pela emancipação dos arquitetos em relação à prática do seu exercício profissional. Na certa algumas medidas que começam a ser tomadas e divulgadas pela imprensa podem parecer sem algum sentido lógico e mesmo provocativas. Mas se considerarmos que durante mais de setenta anos ficamos confinados num sistema multiprofissional, sem autonomia, impotentes diante da distorção de mecanismos fundamentais para a clara definição dos compromissos da prática da arquitetura com a sociedade, compreenderemos o alcance e a necessidade de tais medidas. Há muito o que fazer para reagrupar os arquitetos em torno de princípios profissionais que balizem seu procedimento no mercado de trabalho em benefício de seus contratantes e, consequentemente, na valorização da profissão. Essa não é uma tarefa das nossas entidades, cada uma com seu papel específico afinado com a aspiração ou visão pessoal de cada um. Tampouco pode ser uma meta acadêmica ensinada e debatida como o ideal do indivíduo.
O caso da Reserva Técnica é exemplar por esse motivo, pois se trata de premissa fixada no campo da conduta ética já na lei de criação do CAU. Inicialmente, há anos, a presença do arquiteto junto com seu cliente no momento da escolha e compra de determinado material proporcionava, abertamente, um desconto no preço em favor do cliente para estimular a venda, justificado pelo simples fato de ele, cliente, ter sido ali levado por um profissional da construção. O desconto era concedido em favor do comprador, valorizando assim a presença do arquiteto na busca e em seu compromisso com a qualidade do produto escolhido.
Aos poucos, esse desconto passou a ser oferecido ao arquiteto indicador do lojista, ou mesmo solicitado por ele, sob a forma de propina ou comissão de venda, ficando inalterado o preço de venda ao cliente.
Existe uma linha fina do ponto de vista ético que separa as duas atitudes. Para se chegar a situação atual houve uma manipulação sutil de valores, que transforma o arquiteto em vendedor de materiais justamente para aquele que nele confiou para zelar pela escolha e qualidade do material empregado em sua obra.
Como dizem, não há almoço de graça, então, alguém terá que pagar essa conta. Se o lojista vendeu pelo preço pedido, se o arquiteto recebeu sua comissão, e se o cliente pagou o produto pelo preço fixado pelo lojista, quem perdeu? Perderam todos os arquitetos que não se utilizam desse procedimento.
Essa comissão recebida pela indicação do fornecedor do material ou do serviço substitui a cobrança de honorários. Sabemos que grandes escritórios de arquitetura em todo Brasil vivem exclusivamente da cobrança dessa propina, que, para não ficar vergonhosa nas operações de venda nas lojas, passou a ser chamada de Reserva Técnica, nome que nada mais é do que um eufemismo habilmente criado para tornar nobre uma prática que logra, que engana, quem confia no profissional.
O objetivo da campanha do CAU contra a Reserva Técnica é esse, conscientizar arquitetos e estudantes de arquitetura quanto ao prejuízo que essa prática traz para todos que queiram receber e responder por seu trabalho.
Ao comentar a sanção de Advertência Pública contra uma profissional pela prática da RT, o senhor disse: “pelo que avaliamos, muitos fornecedores fazem esse pagamento constrangidos. Foi inoculado na cabeça deles que não há outro jeito. Acredito que vamos ter uma sucessão de denúncias como resultado desse fato.” O senhor acredita em uma mudança rápida na atitude dos fornecedores contra a prática da RT? Qual recomendação para um fornecedor que queira encaminhar uma denúncia contra um profissional de arquitetura e urbanismo?
RN – Não há nenhuma previsão quanto à rapidez dessa mudança de prática, até porque se trata de um processo que já dura anos e que se consolidou como um recurso fácil e de baixo custo como alternativa diante da difícil cobrança de honorários justos pela elaboração do projeto. A artilharia pesada contra o CAU já começou, e o que posso assegurar é que o Conselho de Arquitetura e Urbanismo será implacável na aplicação de medidas que defendam o prestígio de nossa profissão, em benefício da sociedade.
Quanto à segunda parte de sua pergunta, podemos partir do fato de que é tudo um grande círculo vicioso. O lojista A paga comissão ao arquiteto e vende seu produto. É lógico que o lojista B fará o mesmo, pois seu objetivo é vender. Como propina não gera recibos, não é contabilizada, ou seja, grande parte dessa operação está ancorada na sonegação fiscal. Portanto, é um terreno pantanoso do ponto de vista fiscal e, querendo evitar tudo isso, o fornecedor quando assediado pelo profissional pode e deve recusar e, se lhe interessar, oferecer abertamente o desconto ao cliente, prática comercial perfeitamente legítima. Se o profissional insistir, denuncie o caso ao CAU, procurando, se possível, fundamentar a denúncia com provas documentais ou testemunhas. A partir daí, o CAU instruirá o processo, garantindo a todos amplo espaço para defesas e juntada de documentos. A colaboração inicial do fornecedor é fundamental para se promover o saneamento dessa operação.
Alguns profissionais afirmam que a RT é uma prática corrente do mercado e de que se trata de um meio de sobrevivência para muitos escritórios de Arquitetura e Urbanismo. Como o senhor contesta esse tipo de argumento?
RN – A prática da RT é ilegal e, sendo ilegal não pode ser considerada um meio de sobrevivência legítimo. É um procedimento que prejudica o mercado de trabalho definido por regras em benefício de todos, igualmente. As oportunidades têm que ser disputadas em igualdade de condições, a ilegalidade não é uma dessas condições.
A sanção contra a profissional pela prática da RT foi uma Advertência Pública. Há possibilidade de uma sanção ainda mais severa em eventuais ocorrências mais graves de RT, como por exemplo, a repetição contumaz?
RN – O Código de Ética e Disciplina do CAU define que ele tem duas funções, a primeira é educacional e preventiva, e a segunda, subordinada à primeira, é a função coercitiva, que admoesta e reprime os desacertos procedimentais previstos. Além disso, implanta os conceitos de atenuante e agravante para o exame das circunstancias do fato ocorrido para a justa definição da dosagem das sanções a serem aplicadas. Com a criação do Módulo de Ética atualmente em estudos para ser incorporado ao SICCAU, as Comissões de Ética dos CAU/UFs terão condições instantâneas de julgar com isenção as transgressões e suas consequências, ocorridas em qualquer ponto do país. Obviamente a repetição contumaz de uma mesma transgressão caracteriza-se como agravante, o que poderá ampliar, e muito, a dosagem da sanção.
O senhor pode adiantar quais as próximas etapas da campanha contra a Reserva Técnica?
RN – A campanha foi estruturada em três etapas, a primeira junto aos arquitetos e estudantes de arquitetura, a segunda junto ao comércio e fornecedores de serviços e a terceira junto à sociedade. Entre cada fase, será feito um balanço e avaliação dos resultados para eventual ajuste de rumos. Não se trata de campanha para buscar culpados, mas orientar esses três públicos no sentido de elevar o nível de atuação profissional do arquiteto, premissa básica da lei de criação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil.
Publicado em 01/10/2015
Epaminondas Neto, de São Paulo