Recentemente encontrei um artigo que resumo aqui, publicado em 2005, quando havia uma coluna muito interessante no Diário Oficial da Cidade que tratava de temas caros aos moradores e usuários da cidade, e chamava-se “Ladeira da Memória”. Neste caso, o assunto é “Ipiranga: berço da Independência do Brasil”.
Por sua proximidade com o Caminho do Mar, o Ipiranga foi por séculos um local de passagem, com fazendas, chácaras, áreas de pouso e de poucos moradores. O bairro surgiu a partir de duas grandes glebas: Chácara do Ipiranga e Colina do Ipiranga. Um ano após a Independência, D. Pedro I concedeu licença para a construção de um monumento: o Monumento do Ipiranga, posteriormente denominado Museu do Estado, e hoje, Museu Paulista.
A Colina do Ipiranga atraiu investimentos do poder público após doações de grandes lotes para a criação de institutos assistenciais e de ensino. A instalação dos bondes da Light em 1902 promoveu mais desenvolvimento e implantação de arruamentos, instalação de indústrias e comércio.
O riacho do Ipiranga foi canalizado, e a abertura da avenida D. Pedro I, na antiga Chácara do Ipiranga, conferiu uma perspectiva monumental ao conjunto do museu, jardins, fontes ornamentais, o Monumento à Independência e Capela Imperial.
Em 1930 e 1940 imigrantes sírios e libaneses chegaram para morar e investir na indústria e comércio, sendo os palacetes das ruas Bom Pastor e Costa Aguiar tombados pelo Conselho Municipal de Preservação, os quais traduzem a trajetória de algumas famílias. A Avenida Nazaré é um retrato vivo da história do bairro, com instituições assistenciais, religiosas, escolas e universidades instalados em edifícios do final do século XIX.
Como arquiteta e funcionária há 38 anos da Prefeitura do Município de São Paulo, tenho saudades de tais textos produzidos pelo Departamento do Patrimônio Histórico no DOC, e com relação ao bairro do Ipiranga, verifico que houve uma série de políticas públicas por décadas que fomentaram o desenvolvimento urbano qualificado.
EIXO HISTÓRICO URBANÍSTICO DO IPIRANGA
Entre as diversas atividades cotidianas, como arquiteta e urbanista da prefeitura, recebi um desafio que descrevo em detalhes.
Desde 1972, o Parque da Independência foi protegido pelo município como zona de uso especial, antiga Z8-200 no Plano Diretor, tombado pelo CONDEPHAAT-Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo em 1975, tombado pelo Município em 1991, CONPRESP- Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, e em 1995 tombado pelo IPHAN – Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional, sendo portanto, patrimônio cultural das três esferas de governo.
O conjunto que engloba o Museu Paulista, a Casa do Grito, o Monumento à Independência, a Capela Imperial, os Jardins Franceses, alamedas e demais áreas verdes manteve uma área envoltória de 300m estabelecido pelo CONDEPHAAT.
Chegamos ao desafio! O Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura realizou, então, estudos específicos para o entorno do Parque da Independência, área extensa que requeria pesquisa.
A ferramenta utilizada para identificar o que forma o repertório básico do patrimônio cultural e ambiental do bairro –configurações urbanas, espaços públicos, edifícios e vegetação expressiva– foi o IGEPAC – Inventário Geral do Patrimônio Ambiental e Cultural Urbano, trabalho sistemático desenvolvido pelo DPH desde 1985, ano que iniciei minhas atividades no DPH.
Inicialmente, consideramos como prioridade dos IGEPACs o estudo de todos os bairros históricos da cidade, uma atividade sistemática até a atualidade no Departamento.
O método de trabalho do IGEPAC consiste em: 1- pesquisa interna sobre os bairros, origem, configuração inicial, expansões, transformações, características socioeconômicas; legislações incidentes na área; edificações e tecido urbano; perspectivas de transformação; 2 – trabalho de campo onde são examinados no sítio de pesquisa: aspectos geográficos e morfológicos; referências visuais dos logradouros; usos, estado de conservação e tipologias das edificações.
A coleta destes dados forma um acervo que passa a constituir cadastro fotográfico, fichas e mapeamento que podem ser utilizados na definição de critérios técnicos de preservação.
Visando a reconhecer a dinâmica do bairro do Ipiranga e preservando as referências ambientais e visuais, optamos pela criação de um perímetro com raio de proteção de 300m estabelecidos pelo CONDEPHAAT em 1975 e a área tombada do IPHAN de 1995, sobrepondo a estes, todas as áreas envoltórias dos 21 bens tombados pelo município, no Eixo Histórico Urbanístico durante o período de 1991 à 2007.
O Eixo é formado pelo Parque da Independência, Avenida Dom Pedro I e Avenida Nazaré devido a extraordinária qualidade ambiental e paisagística. Como referência urbana, integra o Parque da Independência às instituições assistenciais e de ensino, aos bens isolados e conjuntos urbanos tombados nos arredores. O aprimoramento dos conceitos de visibilidade, visualidade, ambiência, volumetria, integração espacial resultou na proteção da área verde, do solo permeável, da densa massa arbórea e dos logradouros que envolvem os 21 bens tombados.
A repercussão da proteção deste território em 2007 alcançou a mídia, foi amplamente divulgado e levado à 7ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, 2007, manifestando o grande interesse da população. O assunto reverberou positivamente na imprensa, sendo matéria de capa da Revista da Folha de 20/05/2007 entre outros jornais.
SEGUNDA FASE
Quando o objetivo de preservar a ambiência foi alcançado, o DPH é chamado em 2013 para participar dos estudos iniciais da Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí. Resgatamos o inventário de 1992-1994 e atualizamos o IGEPAC – Ipiranga em 2014, assim o CONPRESP tomba mais 15 bens isolados ou conjuntos urbanos em 2018, concluindo, em tempo, antes da renovação urbana imposta, o ciclo de preservação do bairro do Ipiranga iniciado em 1975.
A proteção urbana nesta escala mantém o ambiente em permanente diálogo com seu cotidiano, evitando o risco de perda da identidade e referências históricas, consequências inevitáveis das generalizações estabelecidas no Plano Diretor atual, com incentivo unicamente à verticalização.
Bibliografia/fontes:
Ladeira da Memória Ipiranga: berço da Independência do Brasil – Ana Winther e Helenice Diamante Diário Oficial da Cidade de São Paulo. 2. set. 2005, Ano 50, n.167, p. III. Coluna produzida pela equipe técnica do DPH.
Processo nº1991-0.005.014-8 – Resolução 05/conpresp/91 de 05 de abril de 1991, – Tombamento ex-offício – Parque da Independência pelo Conpresp, do Parque da Independência e da Coleção Arquivística do Museu Paulista da USP e Coleção Arqueológica, Etnográfica e Histórica do Museu Paulista da USP;
IGEPAC – IPIRANGA 1992 a 1994 – Inventário Geral do Patrimônio Cultural de São Paulo produzido pelo DPH na Divisão de Preservação, identifica o que forma o repertório básico do patrimônio cultural e ambiental de cada bairro, configurações urbanas, espaços públicos, edifícios e vegetação expressiva.
IGEPAC – IPIRANGA complementar atualizado em 2014 para a OUC – Mooca Vila Carioca que passou a ser denominada Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí.
Processo nº 16-003.099-91-65 – Resolução 10/conpresp/94 de 18 de agosto de 1994. – Tombamento da Capela do Bom Jesus do Horto, localizada na rua Bom Pastor, 434;
Processo nº 1991-0.005.386-6 – Resolução 05/conpresp/05 de 28 de junho 2005, Tombamento do conjunto de seis edificações, remanescentes de antigas moradias da Família Jafet, localizadas no bairro do Ipiranga;
Processo nº 1992-0.007.359-0 e processo nº 2007-0.005.608-0 – Resolução 06/conpresp/07 de 08 de maio de 2007 – Tombamento do conjunto dos 12 (doze) imóveis remanescentes dos antigos Institutos Assistenciais e de Ensino, situados no bairro e Prefeitura Regional do Ipiranga;
Processo nº 2006- 0.310.954-0 – Resolução 11/conpresp/07 de 26 de junho de 2007, Regulamentação da Área Envoltória de Proteção do conjunto de bens tombados constituído pelo Parque da Independência, e pelas Antigas Residências da Família Jafet e Instituições Assistenciais e de Ensino, situado no Bairro do Ipiranga, Subprefeitura do Ipiranga;
Processo nº 2015- 0.293.943-2– Resolução 14/conpresp/18 de 26 de fevereiro de 2018, Tombamento de um conjunto de edificações do bairro do Ipiranga;
Processo de Tombamento do Parque da Independência Condephaat e Resolução de 02/04/75;
IPHAN – Tombamento do Conjunto do Ipiranga: Museu Paulista, Monumento à Independência, Casa do Grito e Parque da Independência.
Autora: Ana Lucia FMS Bragança Winther, Graduada e Pós-Graduada , FAUUSP, com Especialização na GV em Administração Pública, exerce na Prefeitura Municipal de São Paulo como arquiteta efetiva há 38 anos, atividades relacionadas à identificação, proteção e análise de Bens Culturais em suas diversas escalas. Selecionou o tema Ipiranga como um exemplo das diversas fases de estudos antes de se promover a proteção de um território tão significativo. O bicentenário da Independência nos faz refletir sobre o papel do Gestor público e sua capacidade em propor transformações e ao mesmo tempo preservar as diversas camadas do tempo em sua materialidade.
Revista Móbile – edição nº 25 – Abril de 2023 – Conteúdo Digital