CAU/SP

A pandemia na Mobilidade Urbana

Vivemos um período de grandes transformações sociais, políticas e econômicas onde a pandemia de Coronavírus é um fato marcante. Um dos aspectos em que as restrições sanitárias impostas foram transformadoras foi na experiência cotidiana de deslocamento no meio urbano. Questões que já estavam presentes se tornaram urgentes ou definitivas e vêm ganhando visibilidade para o planejamento da mobilidade.

Da perspectiva atual, a busca pela fluidez da circulação de mercadorias e pessoas, a redução no consumo de energia, a economicidade e a diminuição do número de mortes de trânsito são problemas que ganharam novas complexidades. Antes da pandemia, a maioria das cidades que adotavam limites de velocidade aos automóveis e promoviam seus planos de mobilidade, com foco na mobilidade ativa e o transporte público tinham como resultado espaços públicos mais humanizados, redução na poluição do ar e no sedentarismo populacional, além de conseguirem diminuir gradativamente os sinistros no trânsito. Ademais, os instrumentos de planejamento urbano buscavam reduzir os grandes deslocamentos intraurbanos e os movimentos pendulares, adotando estratégias como o uso misto e maiores densidades construtivas.

A partir de março de 2020, essa realidade foi alterada repentinamente. Em São Paulo, o necessário isolamento fez com que o número de deslocamentos diminuísse sensivelmente, deixando as principais vias descongestionadas. Como efeito colateral, a maior fluidez favoreceu o aumento da velocidade média praticada pelos motoristas, o que provocou o aumento do número de mortes no trânsito. Nesse contexto, apesar de diminuírem os sinistros, aumentaram os óbitos, principalmente de motociclistas e ciclistas – especialmente os mais jovens – sejam eles estudantes ou motofretistas.

 

Fonte: CET de São Paulo – Relatório Anual Sinistros de Trânsito 2020

 

Ao longo da pandemia, as medidas de isolamento social levaram à diminuição da necessidade de deslocamentos cotidianos e muitas cidades do mundo vivenciaram períodos de interrupção ou redução no uso do transporte público.

Novas tecnologias propiciaram a ampliação do trabalho remoto e do consumo online.  Não apenas a compra pela internet parece ter se consolidado em alguns grupos sociais, como muitas empresas têm decidido manter seus funcionários em home office e seus estoques longe dos centros e ruas comerciais, aproveitando a economicidade dessa nova realidade.

No Brasil, segundo levantamento realizado pelo NZN Intelligence, em parceria com o Estadão Summit Mobilidade Urbana, 45,3% das pessoas mudaram a forma de se deslocar após o início da pandemia.[1] A pandemia evidenciou os problemas estruturais do sistema mobilidade concentrado no automóvel para o transporte particular e no ônibus para o coletivo. O transporte público brasileiro que já vinha num processo de perda de passageiros nos últimos anos, intensificou suas perdas com a popularização dos transportes individuais por aplicativos.

A crise no transporte público, que se agravou com a pandemia, tem relação direta com o fato do Brasil não ter adotado estratégias de sustentabilidade econômica, como vinha ocorrendo em outros países. O modelo de oferta de serviços baseado na operação contratada ou concessionada por meio de empresas privadas de transporte por ônibus vem, desde o início da década de 2010, dando mostras de esgotamento, seja pela dificuldade em prover os serviços dentro da qualidade na escala exigida, seja pelo comprometimento do modelo de sustentabilidade financeira. Acrescenta-se a esses aspectos da mobilidade, a demanda por grandes deslocamentos pendulares que o modelo de desenvolvimento urbano – com baixa densidade construtiva e espraiamento dos bairros periféricos e residências – provoca na maioria das cidades brasileiras

Além disso, há que se considerar o vínculo entre transporte público e a mobilidade ativa. Grande parte dos deslocamentos a pé, que não necessariamente representam viagens completas, ocorrem em função da necessidade dos usuários de acessar os sistemas de transporte coletivo. E, neste sentido, a integração entre as mobilidades ativa e por transporte público de massa é fundamental para o entendimento do novo paradigma, como explica o pesquisador Jan Geels, decorrente do surgimento de um novo regime sociotécnico na mobilidade urbana.[2]

A necessidade global de pensar e implementar uma mobilidade urbana mais limpa e eficiente enfrenta o desafio de incorporar as urgentes questões colocadas pelo contexto pandêmico. No caso do Brasil, esse enfrentamento é ainda mais complexo por ser um país desigual, cuja urbanização constituiu-se de forma veloz, intensa e reproduzindo padrões de segregação socioespacial.

Diante desse desafio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a promoção da mobilidade ativa, sendo que as cidades que melhor responderam a esse estímulo foram as que já eram mais bem preparadas ou que já investem de forma consistente em infraestrutura para o ciclismo e a caminhada. Muitas capitais intensificaram a ampliação de sua rede ciclável com ações rápidas, como foi o caso de Bruxelas e Milão. Ruas de tráfego automobilístico foram fechadas temporariamente, para dar lugar às bicicletas e pedestres como em Vancouver, Denver, Budapeste, Nova York e Cidade do México. Em Berlim, as intervenções provisórias se tornaram permanentes, quando o governo federal introduziu regras em âmbito nacional, proibindo que motoristas estacionem em ciclovias e tornando obrigatório o espaço de 1,5 metro entre carros e ciclistas.[3]

Na América do Sul ocorreram ações em várias cidades, como: Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Recife, Buenos Aires, Lima, Quito, Santiago e Bogotá, onde mais de 100 km de ciclofaixas foram demarcadas por cones de tráfego.[4]

Em maio de 2020, em São Paulo, por meio de uma ação articulada pela Ong SampaPé, com participação de representantes da academia, da sociedade civil e capitaneada pela Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito, criou-se um plano emergencial de abertura de ruas para a mobilidade ativa durante a pandemia, que foi parcialmente implantado. Um Manual de Desenho Urbano e Obras Viárias para orientar os futuros projetos urbanos foi lançado, bem como, debates e ações de urbanismo tático foram realizados, como no caso das extensões temporárias do Ruas SP e da ampliação de calçada na rua ladeira Porto Geral (ilustrada nas fotos abaixo).

 

Foto: Rua Ladeira Proto Geral antes e depois da intervenção. Fonte: Ong SampaPé e @meninododrone

 

De um modo geral, pode-se afirmar que é necessário redistribuir o espaço das vias públicas priorizando o transporte público de massa (como corredores de ônibus, BRT, VLT e trem urbano) em conexão com a mobilidade ativa – pedestres e ciclistas. Nessa direção o Urbanismo Tático é uma boa alternativa, pois é instrumento de intervenção territorial que promove o redesenho do viário e a reapropriação do espaço urbano, por meio de uma ação rápida e com baixo custo. As primeiras ações de Urbanismo Tático ocorreram no início do século, porém teve sua prática ampliada na última década, por apresentar uma alternativa ao processo tradicional de projeto urbano e ganhou ainda mais importância no contexto pandêmico, por sua eficácia nas necessárias readequações urbanas em prol da mobilidade ativa.

Nesse sentido, entre as ações previstas pela Comissão Temporária de Mobilidade Urbana do CAU/SP está o apoio à regulamentação do Urbanismo Tático junto ao Contran, atualmente em desenvolvimento pela Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da ANTP, com o qual o CAU/SP celebrou convênio. Esta regulamentação irá  possibilitar aos arquitetos e urbanistas utilizarem esse importante instrumento urbano de forma mais segura e assertiva, para viabilizar o redesenho dos espaços públicos de nossas cidades. É naturalmente um caminho para melhorar o espaço urbano e um campo de trabalho que se abrirá aos profissionais.

 

Autores

Jose Renato Soibelmann Melhem

Fernanda de Macedo Haddad

Danila Martins de Alencar Battaus

Jose Marcelo Guedes

Maria Ermelina Brosch Malatesta

Paulo Marcio Filomeno Mantovani

 

 

[1]Um ano de pandemia: o que mudou na forma de se deslocar?. Maio 2021, Disponível:

https://summitmobilidade.estadao.com.br/ir-e-vir-no-mundo/1-ano-de-pandemia-o-que-mudou-na-forma-de-se-deslocar/Acesso em 13 Nov. 2021

[2] Disruption and low-carbon system transformation: Progress and new

challenges in socio-technical transitions research and the Multi-Level

Perspective, 2017, Frank W. Geels, https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S2214629617303377

[3]Kuebler, Martin Como a pandemia está transformando a mobilidade urbana. DW. Maio 2020, Disponível em:

https://www.dw.com/pt-br/como-a-pandemia-est%C3%A1-transformando-a-mobilidade-urbana/a-53458785. Acesso em 26 Out. 2021

[4]Corrêa, Fernando; Ribeiro, Andressa. Ciclovias Temporárias são resposta sustentável de cidades do Brasil e da América Latina à Covid 19. Jul.2020. Disponível em: https://wribrasil.org.br/pt/blog/2020/07/covid-19-faz-cidades-do-brasil-e-da-america-latina-investirem-em-ciclovias-temporarias Acesso em 18 Out. 2021