CAU/SP

A importância da mobilidade ativa na qualidade de vida das cidades brasileiras

 

Prefeitura de São Paulo – apud: WRI Brasil
Prefeitura de São Paulo – apud: WRI Brasil

No mundo atual, em que cerca de 70% da população reside em cidades, se faz cada vez mais necessário repensar as formas como pessoas ocupam e usufruem espaços urbanos, se as atividades cotidianas utilitárias e de lazer são realizadas sem que haja o comprometimento da qualidade de vida.  Isto nos leva diretamente a refletir sobre como são utilizados os locais onde elas acontecem, em especial, espaços públicos.

Vamos supor que um humano pré-histórico fizesse uma viagem no tempo e repentinamente estivesse no meio de uma cidade atual.   Ficaria intrigado ao ver pessoas deslocando-se velozmente no interior de caixas de aço ocupando a maior parte dos espaços públicos, enquanto outras, até em maior número tentariam mover-se em áreas restantes caminhando como eles.

Recorre-se ao uso desta imagem metafórica porque certamente ela estaria utilizando o que foi o início da forma mais preliminar de mobilidade humana, a caminhada.  Entretanto, será que este antepassado hipotético teria tido tempo suficiente para ter se deixado seduzir pelo “rei da rua”, o automóvel, que hoje é supervalorizado e priorizado nas políticas públicas de mobilidade urbana da maioria das cidades brasileiras?  Será que ele concluiria que locais onde antes pessoas caminhavam, se encontravam para conversar quase que não existiam   por estarem ocupados por amplos e barulhentos espaços lineares, repletos de máquinas de se deslocar, paradas em meio a um ar difícil de se respirar?

Por este motivo é que, muito antes de receberem esta impossível e inesperada visita direto da pré-história, muitas cidades do mundo, entre elas algumas brasileiras, têm acordado para o caos que se tornaram e buscam resgatar espaços perdidos para as máquinas de se deslocar, devolvendo-os para a fruição das pessoas em formatos mais humanos e qualitativos (Jacobs).

Figura 1: Número de pessoas que são levadas por hora em cada modo de transporte numa faixa de 3,5 m de largura (Fonte:  ITDP)
Figura 1: Número de pessoas que são levadas por hora em cada modo de transporte numa faixa de 3,5 m de largura (Fonte:  ITDP)

 

Para se chegar a este ponto, políticas públicas de mobilidade urbana têm envolvido, além de incentivo ao uso do transporte público coletivo, o incentivo às formas de mobilidade ativa a pé e por bicicleta. Não é preciso ser um gênio matemático para saber que um mesmo espaço urbano é muito mais utilizado por gente caminhando, pedalando e usando de ônibus, metrô ou trem, do que no interior de automóveis. Todas essas formas de transporte não consomem, ou consomem bem menos, qualquer tipo de combustível e forma de geração de energia, seja ela fóssil, biológica ou elétrica.

Cidades dos sonhos são cidades sem poluição ou produção de resíduo tóxico, fruição de boa saúde, onde se pratica exercício físico e, o que é melhor, com muito mais qualidade de vida pela redução do tempo gasto em congestionamento, e pela intensificação cotidiana da formação e consolidação das redes de relações sociais (Appleyard&Leatell).

 

Figura 2:  Intensidade de tráfego define a quantidade das relações sociais de vizinhança. Fonte: Appleyard & Leatell – 1979 Apud: Malatesta
Figura 2:  Intensidade de tráfego define a quantidade das relações sociais de vizinhança. Fonte: Appleyard & Leatell – 1979 Apud: Malatesta

 

Esta economia e racionalidade é que torna atrativo qualquer investimento em redes de Mobilidade Ativa porque seu principal trunfo é a otimização de um recurso cada vez mais em falta nas grandes cidades: espaço público. Qualquer infraestrutura voltada para a Mobilidade Não Motorizada requer muito menos espaço para acomodar um número maior de usuários, impacta muito menos no ambiente urbano e contribui até na revitalização das áreas degradadas, trazendo qualidade paisagística e de vivência.

É de se esperar também uma sensível redução na ocorrência de sinistros de trânsito, em especial os que envolvem pedestres, uma vez que o redesenho urbano proporciona melhor distribuição do direito de uso do espaço e do tempo de ruas e avenidas, reduz os padrões da velocidade veicular a níveis civilizados que proporcionam compartilhamento seguro, confortável e harmonioso entre todos os tipos de mobilidade.  Da mesma forma, a ampliação dos espaços públicos e das oportunidades de convívio entre as pessoas com a intensificação das relações sociais é um meio inteligente de pacificação, eliminando o isolamento e o anonimato propícios a situações de violência urbana.

Por último e a mais importante vantagem trazida pelas políticas que valorizam as formas de Mobilidade Ativa diz respeito ao sentimento de felicidade trazido pela convivência entre as pessoas nos processos de apropriação dos espaços públicos.  O que isto significa?  Significa que quando você caminha ou pedala pode observar, conhecer, interagir com muitos locais e pessoas, conhecidos ou não, que estão fazendo exatamente a mesma coisa.  É ótimo começar o dia encontrando gente conhecida e até mesmo prosseguir seu caminho com elas, experiência impossível para quem se encontra no isolamento e na velocidade do automóvel.

Essas pequenas alegrias cotidianas expandem nosso universo de vida para além das paredes de nossas zonas de conforto e contribuem para estímulos sensoriais que estabelecem sensações de bem-estar, satisfação com a vida, enfim, felicidade.  E felicidade é um fator que começou a entrar nas medições de qualidade de vida através de conceitos propostos pela “Economia da Felicidade”. De acordo com Pedro Fernando Nery, este conceito aponta que fatores não econômicos podem influenciar no nível de satisfação das pessoas e a criação de espaços públicos permitem a convivência agradável que gera cidadãos mais felizes.

 

Referências:

Jacobs, Jane “Morte e vida das grandes cidades” – Martins Fontes Editora, 2000;

Malatesta, Maria E. B. “A bicicleta nas viagens cotidianas do município de São Paulo” –  tese de doutorado FAUUSP – 2014; https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chromeinstant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=a+bicicleta+nas+viagens+cotidianas+do+munic%C3%ADpio+de+sao+paulo

Malatesta, Meli. “A Rede da Mobilidade a Pé” – Editora Annablume, 2018;

Nery, Pedro Fernando: “O que é economia da felicidade e como ela pode ser aplicada às políticas públicas” – 2014 – www.brasil-economia-governo.org.br  .

 

Autora:

Maria Ermelina Brosch Malatesta – Meli Malatesta Conselheira Suplente, membro da Comissão Temporária de Mobilidade Urbana e Coordenadora adjunta da CT Acessibilidade, CAU SP. É arquiteta urbanista, com doutorado em Mobilidade Ativa pela FAUUSP (2014), ativista, consultora e professora externa da FAU Mackenzie em Mobilidade Ativa.  Autora dos livros “Pé de Igualdade” (2018) e “A Rede da Mobilidade a Pé” (2018). Criou e preside a Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da ANTP – Associação Nacional de Transporte Público.

Revista Móbile – edição nº 24 – Setembro de 2022 – Conteúdo Digital